Arte criatividade composição

Introdução

Criatividade é sem dúvida uma palavra fascinante, palavra que nos deixa imaginar sobre sua essência, assim como as palavras liberdade ou amor, sem todavia chegar a penetrar em suas essências. Semanticamente ricas de interpretantes e significados, nos fascinam porque oferecem infinitos pontos de vista através dos quais lê-las (ou talvez seria melhor dizer tentar lê-las). Assim, da mesma forma que somos atraídos quando encontramos algo tão fascinante, fui atraído pelo título de um livro de Rollo May, A coragem de criar. Um título que promete “altas viagens” em volta do fenômeno da criação e de suas implicações. Confesso que o meu primeiro pensamento logo foi para o campo musical, área à qual me dedico desde sempre e à qual consagro meus estudos e a maior parte do meu tempo. Então, logo fui me perguntar se o Rollo May não tinha alguma coisa a revelar sobre esse assunto. Dentre as manifestações artísticas, a música me parece a que mais suscita curiosidade pela sua pressuposta universalidade e, ao mesmo tempo, especificidade de linguagem. Ela é a única arte intangível; não pode ser vista, tocada, nem presa à partitura; ela existe somente no momento em que é criada –ou recriada. Há algum tempo me pergunto se, quando se fala em criatividade e em seus mecanismos com relação às artes em geral, os mesmos axiomas valem para todas elas –as artes- ou não. Outra pergunta que há um tempo me acompanha é essa: até que ponto é possível indagar cientificamente, usando dos conhecimentos sobre os mecanismos de funcionamento de nosso cérebro, das disciplinas psicológicas, fisiológicas, da tecnologia, para desvendar o mistério da inspiração, da intuição, da emoção ligadas a uma obra de arte, tanto na sua concepção assim como na sua produção ou fruição. Até onde isso não se parece com a tentativa eterna do homem descobrir o segredo, o princípio primo da mesma vida? Meu objetivo principal, nesse estudo, é tentar entender quanto de universal pode ser dito –se algo pode ser dito- com relação à criatividade e seu relacionamento com às várias áreas das artes (artes visuais, música, poesia, cinema, etc..).

Para uma definição de arte.

A palavra latina Ars indica habilidade, técnica, capacidade, estratagema, qualidade, prática, ciência, disciplina, profissão, teoria, método, sistema, procedimento. Podemos notar como essas definições não estejam longe da moderna palavra arte. Nós usaremos essa palavra no sentido de fruto da criatividade, e em nossa cultura ocidental logo poderíamos identificá-la sob vários pontos de vista: arte como resultado do encontro com o belo, arte como imitação da natureza, arte como manifestação da consciência coletiva, arte fora do espaço-tempo. Essas são apenas algumas das acepções, definições e funções que a arte teve ao longo da história do pensamento da nossa cultura. Acredito que a arte seja um produto social. Em seu livro A produção social da arte, Janet Wolff, manifesta sua posição segundo a qual a arte só pode ser compreendida de forma adequada dentro de uma visão sociológica. A arte não pode se criar nem compreender fora de um contexto social. Logo surge uma questão: se a arte é um produto social, então não pode existir arte fora desse contexto; e como trata-se de um contexto variável, de certa forma casual –no sentido que não necessariamente uma determinada cultura ou sociedade deve existir- ligado a fatores “humanos”, até que ponto será possível definir a criatividade em seus mecanismos primários e/ou absolutos?

Para uma definição de criatividade.

Estritamente ligadas à questão “o que é arte?” estão as perguntas “o que é criatividade?” “O que é criativo?”. Ainda, “qual a relação entre arte e criatividade?” Pelas palavras de Janet Wolff se evidencia que esse é um conceito dinâmico, mudando conforme as condições sócio-histórico-culturais. Maiakovski, por exemplo, confere muita ênfase ao processo técnico, afirmando que o trabalho do artista –ele na verdade fala exclusivamente do poeta- deve ser realizado diariamente, buscando as próprias idéias em lugares específicos, trabalhando de maneira sistemática e não crítica, tendo o artista a consciência ou não do processo produtivo. Maiakovski defende ainda que todas as formas de trabalho são igualmente criativas quanto o trabalho artístico. Posição parecida me parece ter Rollo May quando escreve:

“A criatividade está no trabalho do cientista, como no do artista; do pensador e do esteta; sem esquecer os capitães da tecnologia moderna, e o relacionamento normal entre mãe e filho” (Rollo May, 1975:34).

Analisando a teoria de Marx sobre a arte, Janet Wolff ressalta as palavras dele quando afirma que “o trabalho humano é essencialmente criativo”. Em sua teoria Marx diz que um trabalho realizado conscientemente, que faz uso das potencialidades do indivíduo, utilizando a imaginação e abstração, é um trabalho criativo, que nasce das necessidades e intenções humanas, sendo assim construtivo e transformativo. Mas para isso o trabalho deveria ser não-alienado. Wolff cita ainda Vazquez, que acompanha o pensamento de Marx contra o modo de trabalho capitalista, afirmando que o trabalho é expressão e condição da liberdade humana. Seguindo esse pensamento, Wolff conclui que o trabalho é uma atividade humana básica, e sendo não-alienado, constitui uma atividade cria

tiva livre. Mas Vazsquez também ressalta que o trabalho artístico acaba caindo nas leis do capitalismo sendo considerado como mercadoria. Segundo ele o artista está sujeito aos gostos do mercado; se ele produz para esse mercado, então deve seguir suas exigências e isso afeta o conteúdo e a forma da obra de arte. O artista do qual Vazquez está falando é o que produz uma obra comercial.

Relevamos a idéia segundo a qual os conceitos de arte e artista são dinâmicos, variando conforme os contextos sócio-histórico-culturais. Acreditamos, porém que seria útil fazer uma distinção entre dois tipos de artistas: o que chamaremos de inovadores e o que chamaremos de mantenedores. Com as palavras de Rollo May: “Para definir a criatividade é preciso distinguir as pseudoformas –isto é, criatividade como estetismo superficial- da sua forma autêntica –ou seja, o processo de criar algo novo” (Rollo May, 1975:38). Hipotetizamos que os dois tipos, que chamamos de inovadores e mantenedores, produzem tipologias diferentes de obra de arte, as duas comprometidas sócio-histórico-culturalmente, se bem de formas diferentes.

Para isso recorremos às idéias de alguns autores.

Para o semiólogo Jean Molino, todas as formas de expressão humana (língua, filme, música, pintura, etc..) podem ser definidas como formas de expressão simbólica, e portanto objeto de análise semiológica. Na análise semiológica podemos distinguir três dimensões:

1. O processo poiético, ou seja o resultado das estratégias através das quais se gera a obra de arte, que antes não existia (a análise do processo poiético é, portanto, a análise do ponto de vista do autor da obra de arte).

2. O processo estético, que é o resultado das estratégias através das quais outro homem lê e interpreta a obra de arte (a análise do processo estético é, portanto, a análise do ponto de vista do outro, de quem não é autor da obra de arte).

3. Entre essas duas dimensões existe o objeto material, que não existe plenamente a não ser quando a obra é “lida”, executada ou percebida. Sem esses momentos a obra de arte, para Jean Molino, simplesmente não existe uma esquematização talvez ajude para entendermos a idéia dele:

Esse parece ser o esquema clássico da comunicação, próprio de autores como Jakobson ou Eco, segundo o qual existe um código em comum entre o autor e o público que torna possível a comunicação. A diferença inovadora da teoria de Molino reside na direção daquela seta que vai do público para a obra de arte e não vice-versa. Não teria uma continuidade de fluxo, do autor até o público. Na concepção de Jean Molino, a dimensão estética é um processo ativo de construção de significados, atribuídos á obra de arte e que não são necessariamente os mesmos que o autor projeta na obra. O público produz, portanto, hipóteses sobre o que o autor quis dizer, com aquela obra de arte. Nesse ponto citamos Luciano Nanni, o qual afirma que a única pessoa que não estaria autorizada a falar de estética sobre uma obra de arte seria o próprio autor. Segundo o modelo de Jean Molino, existe portanto uma diferença entre o ponto de vista do autor, que produz uma obra, e o ponto de vista do público. Em seu livro Music and Discourse, Toward a Semiology of Music, Jean-Jaques Nattiez oferece um exemplo esclarecedor:

“Em qual momento da linguagem musical ocidental podemos pensar que as estratégias perceptivas correspondam às estratégias compositivas? Com certeza não na época de Bach: quem é capaz de seguir em uma fuga os detalhes das transformações de um sujeito, de um contra-sujeito, de uma resposta? E certamente as coisas não são melhores no século XIX […] se não não se explicaria porque Kreutzer, no final da estréia da segunda Sinfonia de Beethoven gritou “ele está louco!”. Então, onde é que está a comunicação musical?” (Nattiez, 1990:36) Em seu livro Estetica della musica, Enrico Fubini faz uma pequena história da apreciação/fruição musical, e ressalta como essa tenha sido diferente a cada época. Quer dizer: uma mesma obra musical suscita no ouvinte diferentes reações/interpretações, conforme a época em que ele vive. Portanto, do ponto de vista da sociedade, não somente a obra de arte é produto socio-cultural, mas também a sua leitura é fruto do pensamento em vigor.

É possível entendermos essa posição se pensarmos que muitas das inovações artísticas que marcaram a história das artes, quando foram produzidas suscitaram polêmicas e discussões.

Para mais um exemplo no campo musical, baste pensar à emancipação do ruído na música. Em uma determinada época não seria admissível o uso de um determinado ruído ou timbre em um contexto considerado musical. O mesmo conceito de música mudou. O que nos leva a considerar que o que é arte em um determinado contexto ou época pode não sê-lo em outra. Esse ponto de vista explicaria o porque muitos artistas morrem em absoluta pobreza e se tornam famosos depois da morte: simplesmente o artista antecipa o próprio tempo. Esse é o caso em que, de fato, ele é aceito como artista logo depois de sua morte.

Podemos constatar que a teoria de Jean Molino e as colocações dos autores citados acima leva à consideração condividida pela Janet Wolff: toda a obra de arte é um resultado social. Mas nós queremos tentar ir além dessa colocação. Antes de tudo é importante levantar a questão:quem “faz” o artista é a sociedade, que o reconhece como tal, ou ele preexiste, independe do julgamento e da aceitação coletiva?

Segundo o primeiro ponto de vista, não seria suficiente alguém se declarar artista se suas próprias obras não são aceitas como obras de arte. Do outro ponto de vista, ele produz por necessidade interior, independente das necessidades do mercado. Aí vem à tona uma citação de Aristotele, segundo o qual “A arte conclui as coisas quando a natureza falha, ou imita as partes que faltam”.

Um sujeito, então, se coloca em um determinado contexto sócio-cultural, membro de uma comunidade da qual faz parte, da qual se faz representante direta ou indiretamente. Ele não é ainda um artista; simplesmente, ele, metabolizando a própria cultura e suas manifestações, produz uma obra inovadora.

Nas palavras de Rollo May “Sua criatividade é a manifestação básica de um homem realizando o seu eu no mundo” (Rollo May, 1975: 38).

A obra produzida por ele pode ser aceita ou rejeitada pela sociedade naquele determinado contexto histórico. Se aceita, a manifestação individual se torna obra de arte, e o sujeito se torna um artista para aquela sociedade. Se rejeitada, a obra não vale nada, o sujeito não é considerado um artista, os dois –obra e artista- passando a ser esquecidos, negligenciados. O artista não passará para a história e as gerações futuras não conhecerão seu nome –lembremos o caso do famoso Johann Sebastian Bach, cuja obra, considerada obsoleta, foi esquecida no fundo de um baú até sua casual descoberta no começo do século XIX; é difícil imaginar nossa cultura musical, nosso mundo musical de hoje, sem a obra do Bach; entretanto, ela beirou a destruição, e seu nome não teria chegado a nós. O que se deu, no caso do Bach, foi que as gerações sucessivas a ele recusaram sua obra.

Ponhamos agora o caso em que uma determinada produção individual for socialmente aceita; então o individuo é reconhecido como um artista e sua produção como obra de arte. A partir desse momento, naquela sociedade algo novo se instala: um novo ponto de vista de representação do mundo. A sociedade metaboliza a obra de arte, e ela existe enquanto reconhecida pelo público como tal. O autor não detém algum poder sobre ela, ele simplesmente criou-a.

A criatividade como questão ético-social: que criatividade é essa.

Além da esfera social, a criatividade, nas palavras de Rollo May, tem um sentido ético: “A coragem é necessária para que o homem possa ser e vir a ser. Para que o eu seja é preciso afirmá-lo e comprometer-se. Essa é a diferença entre os seres humanos e o resto da natureza. A bolota transforma-se em carvalho por crescimento automático; nenhum compromisso consciente é necessário. O filhote transforma-se em gato pelo instinto. Nessas criaturas, natureza e ser são idênticos. Mas um homem ou uma mulher tornam-se humanos por vontade própria e por seu compromisso com essa escolha”.

Esse homem criativo do qual o Rollo May fala me parece ser um “homem ético”, comprometido socialmente e historicamente com o bem estar e a evolução da sua espécie. May escreve: “Seja qual for a nossa atividade, há sempre uma satisfação profunda em saber que estamos contribuindo para a estruturação de um mundo novo. Isso é coragem criativa, por menores e acidentais que sejam as nossas realizações” (Rollo May, 1975: 34).

E mais à frente: “A criatividade está no trabalho do cientista, como no do artista; do pensador e do esteta; sem esquecer os capitães da tecnologia moderna, e o relacionamento normal entre mãe e filho”. Nesse ponto surge em mim a dúvida de que esse tipo de criatividade da qual fala May, seja algo diferente daquela criatividade estritamente própria do artista que produz obras de arte. Como se existissem, pelo menos, duas formas de criatividade, uma que é a capacidade de se relacionar com o mundo, construir sua natureza, vencer seus obstáculos, organizar seus códigos e valores; o que, em termos junguianos, poderia se comparar aos mitos heróicos que lutam pelo crescimento e autonomia. A outra forma sendo especificamente relativa à capacidade de criar as que nossa sociedade chama de obras de arte. Em outro lugar May escreve: “Sem dúvida, na nossa cultura a criatividade associa-se a sérios problemas psicológicos –Van Gogh enloqueceu, Gauguin era evidentemente esquizóide e Virginia Woolf sofria de depressão grave. Evidentemente, criatividade e originalidade associam-se a pessoas que não se adaptam à cultura em que vivem”. (Rollo May, 1975:37). Me parece evidente que nesse trecho o May esteja referindo-se a uma forma de criatividade não comum. Eis as palavras de Jung para ajudar a esclarecer de que tipo de experiência criativa se trata: “(…) Essas obras praticamente se impõem ao autor, sua mão é, de certo modo assumida, sua pena escreve coisas que sua própria mente vê com espanto. A obra traz em si sua própria forma; tudo aquilo que ele gostaria de acrescentar, será recusado; e tudo aquilo que ele não gostaria de aceitar, lhe será imposto. Enquanto seu consciente está perplexo e vazio diante do fenômeno, ele é inundado por uma torrente de pensamentos e imagens que jamais pensou criar e que sua própria vontade jamais quis trazer à tona”. (Jung, 1985: 61-62).

Certamente não basta que um artista venda quadros ou canções e ganhe muito dinheiro com isso, para pressupor que ele vivencie a experiência da qual Jung fala. Essa última me parece ser uma característica daqueles artistas que antes defini como inovadores, os quais, aliás, correm sérios riscos de não serem entendidos pela sociedade. Talvez poderíamos hipotetizar que aqueles artistas que chamamos de mantenedores utilizam-se de uma forma de criatividade “mais racional”, digamos assim, indicando com esse termo algo mais ponderado, controlado, calculado. Interessante a distinção que Rollo May faz entre talento e criatividade: “faça uso dele ou não; pode ser a medida da pessoa. Mas a criatividade só existe no ato” (Rollo May 1975:42). Talvez os mantenedores estejam providos de um certo tipo de talento que lhes permite criar sem necessariamente passar pelos sérios problemas psicológicos dos quais fala May.

A pressuposta universalidade do fenômeno criativo se aplica à arte musical?

Os processos que estão à base da criatividade, da espontaneidade e da inspiração são universais? Valem para todos os tipos de manifestações artísticas, sejam essas em forma de música, pintura, escultura, cinema, poesia, etc?

Rollo May utiliza, em suas análises, o “artista” para tentar derivar algo universalmente válido: “Parto do princípio de que a análise da natureza da criatividade aplica-se a todos, os homens e mulheres, no momento de criar” (Rollo May, 1975:39). “Estabelece-se uma disputa ativa no íntimo da pessoa, entre o pensamento consciente e a antevisão ou perspectiva que luta para nascer. (…) O sentimento de culpa presente ao ato origina-se da necessidade que tem a percepção interior de destruir algo”. (May, 1985:59). Para Jung a arte representa uma possibilidade de autoregulação psíquica, por ter suas raízes no mais profundamente obscuro e ainda humano do homem, ou seja, no insconsciente coletivo. No debate sobre os processos cognitivos, uma questão central é a do valor atribuido à verbalização dos compositores. Em seu livro The Musical Mind. The Cognitive Psicology of Music, John A. Sloboda indaga como é possível entender, no plano psicológico, o processo da criação musical. Ele indica quatro possíveis métodos de pesquisa:

1. A história de uma específica obra, assim como mostrada pelos manuscritos do compositor (Beethoven, por exemplo, voltava muitas vezes sobre o que tinha escrito para modificá-lo; diferenças na tinta utilizada mostram que Mozart escrevia, muitas vezes, a melodia e a voz grave, para depois encher o espaço intermediário com as notas harmônicas).

2. O exame do que os compositores dizem a respeito dos próprios métodos de composição.

3. A observação direta do compositor durante seu trabalho.

4. A observação e descrição da execução durante uma improvisação. Esse ponto é considerado pelo Sloboda muito relevante.

Cada um dos métodos acima citados é minuciosamente tratado por Sloboda, e o trabalho dele é hoje considerado um pilar importante dos estudos cognitivos sobre a música. Resolvi apresentar algumas citações de “artistas importantes”, para conhecermos o ponto de vista deles:

a) “Com base na minha experiência na atividade criativa, posso dizer que improvisamente me aparece um motivo, ou uma frase melódica de dois-quatro compassos. Passo-a para o papel, e, imediatamente se amplia em uma frase de oito, dezesseis, trinta e dois compassos, que naturalmente não permanece inalterada, mas depois de um “amadurecimento” breve ou longo, se elabora gradualmente de forma definitiva [..]. O trabalho então procede em um ritmo que depende em primeiro lugar da espera do momento em que a minha imaginação estará pronta e capaz de me servir de novo”. (Richard Strauss, apud John A. Sloboda, 1985).

b) “Vocês poderiam me perguntar de onde tiro as idéias (para um tema). Não posso responder com certeza elas me vêm espontaneamente”. (Beethoven, apud John A. Sloboda, 1985).

c) “De onde e como (as idéias) me vêm eu não sei; nem consigo

forçá-las. Aquelas que me agradam as retenho na memória, e tenho o costume de ruminá-las. Se continuo dessa maneira, mais cedo ou mais tarde sinto como devo tratar essa ou aquela música [..] segundo as regras do contraponto, e as peculiaridades dos vários instrumentos”. (W.A.Mozart, apud John A. Sloboda, 1985) d) “No trabalho do compositor, a primeira fase consiste [..] na “inspiração”. O compositor [..] tem uma idéia [..] que se compõe de notas musicais e ritmos definidos que geram nele o impulso através do qual desenvolverá o seu pensamento musical. A inspiração pode chegar como um raio imprevisto de música, de um claro impulso que o leva até uma certa meta, que o compositor sente ser obrigado a atingir.

Depois da inspiração e da concepção, é o momento da execução. O processo de execução é antes de mais nada um escutar interno de como a música se modela; é deixar a música crescer; é seguir a inspiração e a concepção até onde elas podem nos conduzir. Uma frase, um motivo, un ritmo, até um acorde, podem conter dentro deles na imaginação do compositor, a energia que produz o movimento. Ele levará o compositor, através das forças do seu movimento, da sua tensão, a outras frases, outros motivos, outros acordes. [O compositor] não é muito consciente de como as idéias venham até ele. É muito freqüentemente inconsciente de quais sejam exatamente os seus processos de pensamento, até o momento em que eles não se desenvolvem, e muito freqüentemente um trabalho acabado é compreensível a ele imediatamente após ter sido terminado. Mas por que isso? Porque a sua experiência em criar a obra é incalcolavelmente mais intensa de qualquer outra experiência que possa derivar dela; porque o produto acabado é, por assim dizer, o objetivo de tal experiência, e não é sob nenhum aspecto uma repetição”. (Roger Sessions, apud John A. Sloboda, 1985).

No debate sobre os processos cognitivos, uma questão central é a do valor atribuido à verbalização dos compositores. Sloboda evidencia como todos os relatos acima apresentem algo em comum. Na composição estariam presentes duas fases: a primeira, da “inspiração”, momento em que uma idéia, um tema, aparece à consciência; a segunda, da “execução”, em que a idéia está sujeita a procedimentos conscientes e voluntários de ampliação e transformação. Ainda, acrescenta Sloboda: “Essa dicotomia não se refere exclusivamente à composição musical, mas se pode achar em cada área das atividades criativas, como demostram as pesquisas de Ghiselin (1952) e di Vernon (1970). É como se o artista criativo possuísse um repertório consciente das coisas que pode fazer com o material de base, mas estivesse faltando a ele um análogo repertório para gerar a idéia primária sobre a qual exercer suas capacidades. Parece quase que a inspiração surge do exterior” (Sloboda, 1985: 190, tradução nossa).

Sloboda apresenta uma figura para exemplificar:

Para Sloboda os compositores conseguem falar com uma certa facilidade dos processos do consciente e com menos precisão dos que estão indicados na figuras como pertencentes ao inconsciente. Os blocos retangulares (E, F e G) representam o conhecimento e as estruturas que são adquiridas pelo compositor ao longo de sua experiência. Os blocos circulares (A,B,C,D) contém os materiais de transição, que constituem as versões sucessivas de uma composição.As linhas que unem os blocos representam os processos através dos quais os conteúdos dos vários blocos são transformados e utilisados.

Sloboda cita, ainda, relatos de compositores pelos quais se evidencia como um dos maiores limites para o artista é a forma:

“Não posso reclamar quanto à riqueza de imaginação ou quanto à poderes criativos; por outro lado, porém, sempre sofri com a falta de habilidade no tratamento da forma” (P.I Tchaikovsky, apud Sloboda, 1985: 195,

tradução nossa). Para Sloboda a relação entre a imaginação e a forma é uma questão subjetiva, assim como a capacidade de lidar com os limites impostos pela forma.

A esse propósito, Rollo May escreve: “A arte também exige um limite, fator necessário para o seu nascimento. A criatividade resulta da tensão entre a espontaneidade e as limitações. Estas últimas (…) obrigam a espontaneidade a criar as várias formas essenciais à obra de arte ou ao poema”. (May, 1985: 118).

Conclusões

Nesse ponto do trabalho podemos afirmar que parece que o que está à base das várias manifestações artísticas seja universal, que os processos que estão à base da criatividade, da espontaneidade e da inspiração valem para todos os tipos de manifestações artísticas. Mais uma citação do compositor Paul Hindemith nos ajuda a esclarecer a questão: “Um criador genuíno terá o dom de ver -iluminada no olho da mente como por um raio de luz de relâmpago- uma completa forma musical (mesmo que sucessivamente a sua realização pode requerer três horas ou mais; ele terá a energia, a capacidade de continuar e a habilidade para levar ao estado de existência esta forma que apareceu-lhe, assim que, depois de meses de trabalho nenhum dos detalhes será perdido. (…) Isso não significa que cada Fa# no compasso 612 da versão final tenha sido determinado desde o primeiro relâmpago de cognição (…)”. (Paul Hindemith, apud Sloboda, 1985:196, tradução nossa).

A pesquisa me levou, portanto, a redefinir a suposição inicial, segundo a qual a música -por ser a única arte intangível, que não pode ser vista, tocada, nem presa à partitura, que existe somente no momento em que é criada –ou recriada- pudesse ter alguma característica própria e/ou mecanismos de criação ou de “inspiração” diferentes das outras manifestações artísticas.

Ao longo dessas páginas ressaltaram-se as diferentes modalidades de criatividade que podem dar-se, oferecendo o ponto de vista de vários autores e hipotetizando a existência de dois tipologias de artistas: os inovadores e os mantenedores. Hindemith fala em “criador genuíno” e de “pessoa com médio talento” para apontar diferentes tipologias de criadores; a segunda categoria indicada pode pode chegar a ter, segundo ele, algumas visões que, porém, resultarão pouco claras e definidas. Obviamente a minha definição de mantenedor não coincide com a definição de “pessoa com médio talento” usada por Hindemith. Quem sabe isso deve-se a uma característica dos nossos dias, em que quem pretende governar nosso gosto estético é a indústria do dinheiro com suas leis de mercado.

A frase “A coragem de criar” pode ser bem expressada pela citação de um músico de jazz:

“Qualquer bom músico de jazz possui inúmeros truques de que pode se servir quando se vê num beco sem saída. Mas para improvisar você pre

cisa abandonar esses truques, entrar no vazio e aceitar riscos, até mesmo o de dar com a cara no chão de vez em quando. Na verdade, o que o público mais adora é nos ver cair. Porque então pode ver como conseguimos nos levantar e ir em frente”. (Stephen Nachmanovitch, 1993:31).

É interessante relevar como as várias referências teóricas aqui apresentadas e postas em comparação, provenientes de áreas diferentes –psicanálise, semiologia, psicologia cognitivista, estética, etc..- cheguem ou levem a considerações parecidas no que se refere ao fenômeno da criação e suas implicações.

Para concluir, gostaria de refletir sobre uma última questão: além da coragem de criar, talvez seja útil, nesses nossos dias, refletir sobre a coragem de lutar para manter vivo o gosto estético, a paixão pelo belo. Assim como, nas palavras de Rollo May, “o processo criativo é a expressão (…) [da] paixão pela forma” (Rollo May, 1985: 143), precisa que a coragem seja “a luta contra a desintegração, o esforço ara dar vida a novos seres que trazem harmonia e integração” (Rollo May, 1985: 143) e, nesse sentido que essa coragem seja estendida a todos os homens e mulheres. Nesse ponto, depois de ter percorrido as etapas propostas por Rollo May, gostaria de terminar com uma citação do Platão apontada pelo mesmo May:

“Todo aquele que deseja seguir o caminho certo deve conhecer, desde a juventude, as formas belas; e, quando bem orientado, aprende a amar somente essas formas – esse amor o levará a criar pensamentos sensatos; e logo perceberá que a beleza de uma forma relaciona-se com a beleza de outra, e que a beleza das formas é uma só”.

Referências bibliográficas

– Fubini, Enrico, Estetica della Musica Bologna, Itália, Il Mulino, 1995.

– May, Rollo, A Coragem de Criar, Ed. Nova Fronteira, 1975.

– Molino, Jean, Fait musical et sémiologie de la musique, em <<Musique en jeu>>, n° 17, pp. 37-62

– Molino, Jean, Sur la situation du symbolique, em <<L’Arc>>, n° 72, pp. 20-25 e 31.

– Nanni, Luciano, Tesi di Estetica, Ed. Logosinopie, Castelmaggiore (BO), Itália

– Nattiez, Jean-Jacques, Music and Discourse, Toward a Semiology of Music. Princeton: Princeton University press, 1990

– Nisbet, R.E. e Wilson, J.D. Telling more than we can know: verbal reports on mental processes, in <<Psychol. Rev.>>, 84, pp. 231-259, 1977.

– Sloboda, John, A. The Musical Mind. The Cognitive Psycology of Music. Oxford University Press, 1985.

– Wolff, Janet, A produção social da arte. Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1982

– Jung, C.G, O espírito na Arte e na Ciência. Petrópolis, RJ: Vozes, 1987.

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